domingo, 20 de setembro de 2009

Alimentar com pão e música a sociedade cearense

"O PESSOAL DO CEARÁ"


No final dos anos 60, Fortaleza aglutinava jovens que, "falando da vida e bebendo num bar", respiravam música. Após calorosas reuniões nas casas dos amigos e nos arredores do curso de Arquitetura da Universidade Federal do Ceará (UFC), eles varavam a noite na Beira-Mar, mais precisamente no Bar do Anísio. Queriam se divertir, trocar idéias e, sobretudo, fazer música. A turma de amigos era o "Pessoal do Ceará". A designação popularizou-se com o lançamento do disco Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem, em 73, gravado em São Paulo por Ednardo, Téti e Rodger Rogério, que saíram de sua terra natal para tentar o "Sul, a sorte e a estrada". Mas o Pessoal do Ceará não era formado apenas pelo trio. Configurou-se como um coletivo - sem a pretensão de ser um movimento -, onde circulavam cantores, compositores e representantes de outras áreas artísticas. "Existem focos abrangentes de atenções à música, poesia, literatura, teatro, cinema, artes plásticas, etc. É comum encontrarmos, em alguns componentes do Pessoal do Ceará, uma extensão criativa e participante em mais de uma forma de manifestação artística e cultural", explica Ednardo.

O fato é que tais jovens compartilhavam experiências afins. Como reflexo da efervescência cultural e do contexto político da época, eles canalizavam suas inquietações por meio da música. "Naquela época, tinha repressão forte (da ditadura militar) e a gente procurava expressar o que sentia pela arte, mas de maneira sutil. Hoje já temos outros tipos de violência. Isso deveria unir a classe artística, como acontecia na minha época. Não há mais aquelas turmas", relembra Téti. A intérprete argumenta que a Fortaleza atual não permite mais a agregação de que ela sente falta. "Lembro que a gente caminhava pela Beira-Mar com tranqüilidade e voltava do Estoril às quatro da madrugada".

Durante sua juventude, Ednardo chegou a fazer loucuras do tipo "botar piano em cima da caminhonete e sair tocando pela beira da praia". O cantor acredita que este espírito jovem de curtição ainda existe em Fortaleza, mesmo marcada por outra realidade. "Juventude é um momento de vida maravilhoso, onde por hipótese, tudo é permitido. Mas é um mistério onde cada geração constrói, modifica e pratica, no mesmo mundo, que recebe dos antecessores, outra nova realidade, sonhos e utopias, suportáveis ou não, que em pouco tempo será substituída por outras e mais outras".


Boa parte da geração do Pessoal do Ceará aprendeu a tocar instrumentos a partir da própria convivência com os amigos. Era por meio do "olhômetro" que a aprendizagem tornava-se coletiva. Após estudar piano dos 5 aos 14 anos, Ednardo aprendeu a tocar violão por si só, mas escutava e olhava o que os amigos faziam. "Ao assistir na TV alguns programas e festivais, minha atenção se voltava de um lado para a sonoridade e de outro, olhando os acordes de teclados e violões. Tudo tem este espírito de aprendizagem coletiva e complementar. O fundamental é gostar de música, somar vivências musicais junto com a própria criatividade, que reflete e dirige a música de cada um", diz.

Com formação bossanovista, o autodidata Rodger Rogério afirma que a música de um acabava influenciando a do outro. "Olhando de hoje pro passado, o que a gente fazia era muito próximo. Eu apressei minha alfabetização para ler os folhetos de música". Aprendiz de piano por quatro anos, Téti nunca aprendeu a tocar violão. "Mas foi por pura preguiça. Tinha a mão pequena para fazer pestana e dizia: 'não quero'. Ainda hoje levo carão do meu filho (Pedro) por isso", brinca.

Desde pequena, Téti era chamada para cantar em festas de família e sempre se sentia insegura. "Dava aquela dor no coração! Carreguei essa coisa da infância até a fase adulta. Quando ainda era casada com Rodger, lembro que ele sempre foi muito lento pra se arrumar. Aí ele pegava o violão, com uma cachacinha no copo. Aquela demora, em vez de me acalmar, era uma revolução de adrenalina em mim". Durante o show dos amigos no palco, a cantora ficava nervosa, mesmo na platéia. "Achava que, a qualquer momento, eles me chamariam. Hoje já tenho tranqüilidade, procuro me concentrar antes do show", afirma Téti, que sobe ao palco com as filhas Flávia e Daniela (nos vocais) e a neta Júlia (na percussão).

QUEM É QUEM

Rodger Rogério

Nascido aos 28 dias de janeiro de 1944, Rodger Franco de Rogério teve como primeiro instrumento o contrabaixo acústico. Desde a adolescência, alternava as paixões pela física e pela música, tempo em que surgiram também as primeiras canções, muitas delas em parceria com Augusto Pontes.


Téti

Maria Elisete Morais Oliveira Rogério, Téti nasceu a 13 de junho de 1944. A descoberta da música se deu na adolescência, florescendo mais tarde, sob o convívio de Rodger, Petrúcio Maia, Fagner, Belchior e os demais cearenses do "pessoal".

Após "Meu Corpo, Minha Embalagem" e "Chão Sagrado" (disco que a faz reclamar de sua própria voz, prejudicada devido a um defeito na mixagem), Téti gravou ainda "Equatorial", em 1980, disco hoje fora de catálogo e que contou com participação especial de Fagner.


Ednardo

Da trinca que deu gênese ao "Pessoal do Ceará" em disco, Ednardo foi o que mais se notabilizou, permanecendo até hoje nacionalmente conhecido, em grande parte devido a sucessos como "Terral” e "Beira-mar", presentes no disco lançado ao lado de Rodger e Téti. A consagração veio com "O romance do Pavão Mysteriozo", álbum lançado em 1974, cuja faixa-título seria levada a todo o Brasil, através da novela global Saramandaia.

SAIBA MAIS

Para ler - Na internet, o blog http://pessoaldoceara.blogspot.com apresenta a dissertação completa de Pedro Rogério (filho de Téti e Rodger) sobre "O Pessoal do Ceará: um Habitus Musical na década de 1970". Livros: Terral dos Sonhos - O Cearense na Música Popular Brasileira (Edições Secult), de Mary Pimentel, mapeia a música popular cearense de 1964 a 1979.

Para ouvir - Na internet, o site http://milvinil.multiply.com/tag/tetty traz download para as músicas do LP Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem (73) e do LP Massafeira Livre (1980), fruto da feira que reuniu diversas manifestações artísticas - principalmente a música - por quatro dias, em março de 79, no Teatro José de Alencar.

Para ver - Na internet, o You Tube (http://www.youtube.com/watch?v=yqCwSXlbOp8) traz um clipe da canção "Terral", cantada por Ednardo nas dunas de Jericoacoara.

Publicado pelo Jornal O POVO em 11 abr 2007


PADARIA ESPIRITUAL


No final do século XIX, nos cafés da Praça do Ferreira e do Passeio Público, palco da boêmia de Fortaleza, jovens intelectuais da cidade reuniam-se para discutir arte, literatura, música e política. Um desses grupos, composto por escritores, pintores e músicos, cansados da pobreza cultural da sociedade, que na época valorizava apenas o que vinha da Europa e desprezava a produção nacional e popular, decidiram fundar uma associação cultural. Uma agremiação através da qual poderiam criticar a hipocrisia da sociedade fortalezense e ao mesmo tempo exaltar a produção artística nacional.

Assim, em 30 de maio de 1892 foi fundada a Padaria Espiritual. No século XIX, era comum entre os escritores cearenses a organização em associações literárias, como os Oiteiros (1813), a Academia Francesa do Ceará (1873) e o Centro Literário, que reunia grandes escritores como Juvenal Galeno, Farias Brito, Oliveira Paiva e Justiniano de Serpa. A Padaria Espiritual seguiu essa tendência, embora fundamentalmente diferente. As demais associações eram tradicionalmente formados por membros da elite, sendo instituições sérias, rígidas e solenes, ao passo que a Padaria Espiritual era formada principalmente por intelectuais boêmios e cidadãos comuns, sendo marcada pelo humor, a ironia e a irreverência.


Os membros, entre eles, Antônio Sales (fundador), Rodolfo Teófilo, Juvenal Galeno, Adolfo Caminha, Lopes Filho, Eduardo Sabóia, Lívio Barreto, Antônio de Castro, José Carvalho, Álvaro Martins e Henrique Jorge, se auto-denominavam "padeiros" e tinham a pretensão de fornecer o "pão do espírito" ou "pão cultural" aos sócios e ao povo em geral. Os padeiros reuniam-se todos os dias (com exceção de 5ª feira) na Rua Formosa (atual Rua Barão do Rio Branco.), no Café Java, ou nas casas dos próprios padeiros para editar seu periódico ("O Pão"). Todos adotavam pseudônimos de origem indígena ou sertaneja (como "Cariri Baraúna", pseudônimo de José Carvalho) para escrever os artigos do jornal.

Nele, os padeiros faziam suas paródias, suas críticas, divulgavam suas obras, textos de outros escritores cearenses e cantigas e versos do folclore cearense. Era um folheto simples, do tamanho de uma folha A4, devido às restrições orçamentárias da Padaria, que não contava com quaisquer subsídios. Ao todo teve 36 edições.

Foi um movimento inovador, modernista e nacionalista que antecedeu a Semana de Arte Moderna (1922) e prenunciou muitas de suas bandeiras, como o repúdio ao uso de palavras estrangeiras e a valorização da fauna e da flora brasileiros. O artigo 14 do regimento da Padaria, por exemplo, que proíbe aos padeiros o uso de "palavras desconhecidas da língua vernácula", é uma resposta ao uso de palavras de outras línguas (principalmente a francesa), em estabelecimentos comerciais, em produtos e até na literatura. Já o artigo 21 proíbe o uso, em poemas, romances, pinturas e músicas, de elementos da flora ou da fauna estrangeira, o que era comum na época, devido à influência européia. Os padeiros utilizavam apenas bichos e plantas brasileiros, conhecidos pelo povo.

A Padaria espiritual acabou em 1898 e não teve grande repercussão nacional, mas deixou um riquíssimo legado de romances, poesias e outras obras dos padeiros e influenciou a criação da Academia Cearense de Letras (1894), a primeira Academia de Letras do Brasil. Atualmente, a Academia Cearense de Letras preserva retratos de cada membro da Padaria Espiritual, pintados à óleo por Otacílio de Azevedo.

VEJA AQUI O ESTATUTO DA PADARIA ESPIRITUAL

http://cearadeluz.50webs.com/padaria.htm#est
próxima postagem: Arquitetura e Arquitetos cearenses.